[ o homem que desafiou a vontade ]
Teve fome então comeu. Foi comendo, mastigando impetuosamente até não dar mais conta do que havia no prato. Comeu feito um colosso e quando deu-se por satisfeito veio o sono. Então dormiu. Acordou e ficou a olhar para o teto, alisando a barriga farta. Glutão despudorado. Animal sem termo. Agora saciado, aplacado pelo tédio, recorreu à tv. Umas apresentadoras muito gostosas hoje em dia. Foi visitar a moça da qual usufruía seus serviços com certa regularidade. Infeliz. Depois, olhando pro teto enquanto ela se lavava para o próximo cliente, arrastou os dedos por entre os cabelos e desesperou-se em silêncio; sabia que sentiria fome dali a pouco. Glutão encarcerado, és um servo. Decidiu ser livre e valeu-se do direito de morte, deitando na cama e recusando-se a comer. Nada do que lhe ofertavam o persuadia a mudar de idéia. Filé mignon, batata frita, bacalhau, maminha, feijoada, servidos pelo padre, depois pelo bombeiro e até pelo repórter do programa das seis. O homem, convicto, acreditava ter descoberto o sentido da vida, tinha plena certeza de que na greve das fomes residia a redenção da humanidade. Caminhava, feliz e magro, cadavérico na verdade, a uma morte que libertaria-no da “prisão da existência”. Era até uma atitude bem justificada este fim martírico que ele procurava, mas o regime durou até as entranhas famintas contorcerem dolorosamente, feito uma súplica derradeira de piedade. Aí teve um outro estalo de consciência; não poderia simplesmente morrer. Teria de continuar seu caminho para ser a testemunha viva da libertação. O calo que aperta os sapatos da mãe natureza. Decidiu que era o profeta de que necessitavam, esses pobres miseráveis, imersos no sonho irreal da vida. Tacharam-no de louco, nunca lhe davam ouvidos. Começou a andar sujo, esquivo, barbudo, despido de qualquer vaidade. Alimentava-se de grãos, frutos das árvores, cocô de passarinho... matava a sede com água de poça, água de chuva. Era uma caça à verdadeira razão de existir. Cismou com as pernas e as funções corporais; são as cordas da marionete. Sentou-se embaixo de um jequitibá e adquiriu a postura de um Sidarta. Eram duas árvores enraizadas no meio da praça; a centenária e o aprendiz de vegetal. E ficou lá, incomunicável, intocável, pagando o preço da liberdade, totalmente ebsorto de toda a mudança que se operava a sua volta. Fechou os olhos e desafiou o tempo. Já decrépito, passando por estátua aos pombos, foi combatendo os dissabores da carne até que ela um dia deixou de lhe pedir ar. E assim o mundo inteiro morreu com ele.
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Um vira-latas veio rodeando-lhe, desconfiado, e perdeu o medo quando percebeu que a carne ainda fresca já não vinha acompanhada de vida. Então teve fome e comeu.